Já temos o legado da copa: o movimento de indignação das ruas!
Professor Adilson Schultz
Teólogo e Sociólogo
Parabéns, estudantes!
Parabéns a você que terminou o semestre de estudos e está indignado! Obrigado a você, estudante, que tem se juntado às milhares de pessoas nas ruas para manifestar a indignação. Preste atenção nessa palavra que repeti: indignação. É a que melhor me ocorre para descrever o que está acontecendo nas ruas. O objetivo das manifestações até que pode estar disperso, sem liderança, diluído entre tantas demandas, mas a motivação das pessoas é comum a todas elas, bem fácil de ver: a indignação! E isso não é pouca coisa, pois indignação é a alma do movimento; se podemos identificar a alma de alguém ou alguma coisa, é por aí que podemos entendê-la..
Pedagogia da indignação
O pensador e educador Paulo Freire tem um livro com esse título: Pedagogia da indignação. Que belo par esse título faz com seus outros livros de Pedagogia... do oprimido, da esperança, da autonomia, da indignação... O livro traz, entre outros estudos, as últimas duas páginas escritas pelo renomado professor, poucos dias antes de sua morte, em 22.04.97, onde ele mostra toda sua indignação frente à morte do líder indígena pataxó Galdino Jesus dos Santos, que foi queimado vivo por 5 jovens, em 20.04.1997, enquanto dormia num ponto de ônibus em Brasília. Paulo Freire se diz indignado com a educação precária dos estudantes assassinos, tanto a formal-escolar nada crítica quanto a doméstica-familiar nada ética. Veja um trecho da carta, e tente pensar também nesse momento tão especial de indignação que estamos vivendo:
"Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho senão viver plenamente a nossa opção [a educação libertadora]. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que fizemos e o que fazemos. Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros..." (Paulo Freire, Pedagogia da indignação)
A alma do movimento: a busca de uma nova humanidade
Isso significa que o mais importante das manifestações de rua que estamos vendo agora não é a luta contra a corrupção, os gastos excessivos com os estádios, a melhoria na saúde, na educação, no transporte, as pecs, ... isso tudo é só a casca; a alma do movimento, sua matéria vertente, é a indignação. Indignação contra o quê? Contra o governo, certamente; contra os palácios, contra os partidos, contra a corrupção, contra os empresários, contra as concessionárias de carros importados... Mas isso tudo também é só a casca, porque o protesto é sobretudo contra um modo de vida, um jeito de ser e viver. Suspeito que o que os estudantes buscam é um modo radical e autêntico de humanidade, mais responsável, mais participativa. Ou seja: no próprio gesto está a principal reivindicação. Em outras palavras: os estudantes cansaram dessa vida besta! Como sugere Paulo freire, busca-se um jeito de democratizar e humanizar a vida. É um movimento de gente que uma vida mais interessante, mais responsável, e não só mais justa. Mesmo que o movimento não dê em nada, ele já venceu.
A dissidência revela o que há de melhor em nós
Nessa busca de humanização está o encanto das manifestações. Sempre que vemos um grupo de estudantes caminhando nas ruas juntos, ficamos animados porque ele revela o que há ou poderia haver de melhor em nós mesmos. As dissidências de todo tipo sempre encantam e atraem nossos sentidos pelo que elas contém de reserva de autenticidade, de essência. Dissidências radicais, autênticas, são sempre totalizantes; tem capacidade para nos falar de tudo. A luta do movimento social, os gestos de rompimento dos jovens, as críticas intelectuais aos modelos antigos de pensamento, carregam sempre um apelo à essência, um ensaio de um processo de essencialização do ser humano. O movimento dissidente é fascinante porque guarda-preserva-defende o original, aquela força autônoma estruturante que dá origem a todos os modos de existência. É por aí que já estamos fisgados, porque o protesto dos jovens na rua diz o que somos e, a um só tempo, anuncia o que poderíamos ter e ser. Assim, a nossa adesão aos protestantes revela uma constante antropológica, a busca de toda pessoa para escapar do risco sempre tão presente de viver uma vida alienante e sem graça, e buscar, em contrapartida, constituir uma vida que faça sentido, que seja livre além de justa, explorando a potencialidade de realização humana o tempo todo e em todo lugar, mesmo naquelas vidas mais reprimidas e incompletas.
A reivindicação local precisa falar do universal
Há mais uma coisa, o fato dessa avalanche de manifestações terem eclodido a partir de uma luta bem específica, o Movimento Passe Livre e os famosos vinte centavos. Esse fato carrega um rico elemento pedagógico: qualquer organização ou movimento social bem sucedido, por mais específico e regionalizado que seja, sempre carrega em si grandes reivindicações, sempre mais globais que locais. Essa é a magia de todo movimento social organizado, seja uma greve por melhores salários, seja uma ONG, seja um partido político, ou mesmo uma igreja: estão ensaiando uma nova humanidade! Ele nunca é só local, mas sempre universal. Aí está sua autenticidade; por isso prosperam! O movimento das ruas que vemos é radical, pois quer não só outro mundo para si, mas também para todo mundo, para a humanidade toda.
Sociedade de conflito
O movimento das ruas fascina também porque expõe o conflito social, e daí fazer surgir o confronto de ideias, e assim criar um ambiente mais seguro e emancipatório para ser. É como se os cartazes dissessem em uníssono: não está tudo em paz como se imagina! É como se o movimento fornecesse a todas as pessoas, mesmo a quem não está nas ruas, uma denúncia, e logo uma perspectiva de mudança, de futuro. Esse foi o mérito de nossos movimentos de dissidência mais recentes - 1970 e a Luta armada, 1985 e o Diretas já, 1992 e o Fora-Collor, 2003 e o Lula-lá, 2013 e os jovens nas ruas: há um conflito escondido; há uma coisa errada acontecendo, e ocupar o espaço público mostra isso pra todo mundo. A dissidência sempre será um protesto contra certo ocultamento-adestramento a que determinado processo ou situação está submetido; um protesto contra essa insistência em ocultar o conflito social. Não é isso que estamos vendo nas ruas, um protesto genuíno contra um adestramento que a ordem e o progresso nos imprime?
O movimento é um protesto contra a sociedade
Finalmente, outra lição do movimento é fazer surgir um novo tipo de pessoa, marcado pela cidadania: o apelo coletivo da passagem mais barata de agora – poderia ser também a greve de professores/as, ou a rebelião em presídios - sugere para todos uma reorganização baseada na coletividade, e não mais no direito pessoal. De repente, cada pessoa deixa de ser apenas indivíduo de direito e deveres e passa a ser artífice de um novo tipo de organização social, agente social que quer uma sociedade mais justa. O sujeito não é mais um indivíduo isolado, mas uma força social, que pode mudar a história. O movimento mexerá com a consciência individual e coletiva, mostrando que a nova organização da sociedade mantém um reciprocidade inescapável com um novo tipo de pessoa. Promover a dissidência, nesse sentido, é promover a constituição de sujeitos autônomos. Quem participa de movimentos reivindicatórios descobre que a experiência da coletivização das demandas mexe com a percepção que o sujeito tem de si e dos direitos dos outros – e que sentimento tão agradável tem quem volta de uma manifestação! Essa é a sua força, o fato de tocar na essência do ser humano, a sua busca constante de ser uma pessoa autêntica, livre, autônoma.
Se esse for o legado da copa, já somos Hexa!